Meu quintal é maior do que o mundo
Uma poesia que nos faz refletir sobre o brincar livre, sobre a criatividade, sobre o ócio criativo, ou seja, sobre o criançar constituído pelo tempo e pelo espaço para ser criança.
POEMAS - POESIAS
Alessandra Pereira Pedroso
7/3/2024


Manoel por Manoel
Eu tenho um ermo enorme dentro do olho, Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. E com esta senectez atual me volto a criancês. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo de milho era boi. Eu era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago de minhas raízes crianceiras a visão comungante o oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.
BARROS, Manoel de. 1916-1914 Meu quintal é maior do que o mundo. 1 ed. 12º reimpressão. Rio de Janeiro: Objetiva, 2020.