CUIDAR DA INFÂNCIA É PROTEGER O HOJE E O FUTURO: um convite à mudança

Um artigo para repensar o uso das tecnologias digitais na infância.

TECNOLOGIAS DIGITAIS

Alessandra Pereira Pedroso

10/13/202511 min read

“Atualmente, as crianças apresentam comportamentos antes nunca vistos, com posturas de confronto e desacato a pais e a professores. A agressividade e desrespeito são crescentes, assim como a drogadição e a falta de regulação das emoções." (Evânia Reichert[1], 2011, p. 18)

Este excerto inicial nos conduz a um estado de preocupação, mas é preciso ter cuidado para não apenas nos assustarmos com a situação. Faz-se necessário buscar meios para a reflexão e para a ação consciente e eficaz. Assim, estudar, praticar a escuta e a percepção sensível, bem como estar presente junto às crianças, torna-se essencial — ou melhor, urgente.

A pergunta que permanece é: por que os comportamentos estão se manifestando de maneira nunca antes vista?

Diversas podem ser as respostas ou os caminhos a serem seguidos, mas, neste artigo, discorrerei sobre um deles: o vício em tecnologias digitais em uma fase sensível ao desenvolvimento integral — a primeira infância[2].

A infância é um tempo sagrado

A infância não é uma preparação para a vida adulta — ela é a vida. Um tempo pleno, rico em descobertas, sensações, afetos e vínculos. As marcas deixadas nessa fase reverberam ao longo de toda a existência, de forma positiva ou desfavorável ao desenvolvimento integral do ser. O compromisso da escola e das famílias é educar para ser, para que as crianças tornem-se seres humanos no sentido literal do termo e “não apenas seres informados” (REICHERT, 2011, p. 12).

Nesse período, formam-se as bases emocionais, cognitivas e sociais de toda a existência. É quando se planta — com delicadeza — o que florescerá no caráter do ser humano. É quando a criança conserva sua curiosidade nata, a genuína vontade de aprender e de descobrir o mundo.

A filósofa alemã Hannah Arendt (2014) nos provoca — e, por assim dizer, nos incentiva — a compreender que é responsabilidade dos adultos, escola e família, em trabalho colaborativo, apresentar o mundo material e imaterial às crianças. A partir desse filosofar, dessa provocação, compreendo que é na vida vivida na realidade, fomentada pela curiosidade que permeia as experiências sensoriais — ou seja, ações que envolvem tato, olfato, audição, visão e gustação — que as crianças encontram oportunidades de desenvolvimento. Isso deve estar aliado às ações que favorecem o aprimoramento da coordenação motora ampla e fina.

As fases do desenvolvimento infantil têm seu tempo estimado pela ciência; contudo, cada criança possui sua singularidade e seu próprio ritmo de desenvolvimento. Os marcos do desenvolvimento infantil oferecem uma perspectiva orientadora para identificar em que nível cada criança se encontra. Isso significa que cada situação precisa ser avaliada com cautela e por especialistas. Porém, nesse contexto, cautela é sinônimo de agir com agilidade e serenidade, de modo que cada etapa promova o amadurecimento das aptidões nas idades preciosas e sensíveis da infância (REICHERT, 2011). Por isso, a atenção integral ao desenvolvimento da criança é crucial para o florescimento de seu potencial.

Anos sensíveis - oportunidades únicas?

Desde a gestação até os 12 anos de idade, vivemos o que Reichert (2011) chama de anos preciosos e sensíveis, período em que há uma profunda abertura para o desenvolvimento de virtudes humanas, tais como: (a) temperamento, (b) afetividade, (c) confiança básica, (d) autonomia, (e) vontade própria, (f) iniciativa, (g) curiosidade, (h) impulso intelectual e (i) gosto pelo trabalho e pela aprendizagem. A autora discorre sobre essas virtudes, mas também aborda os vícios humanos em sua obra, que fora publicada em diversos países.

Esse é o único período para o desenvolvimento? De forma ampla, a resposta é sim. É na infância que aprendemos, florescemos e desenvolvemos todo o nosso potencial.

Mas, se essa fase passar e a oportunidade for perdida, é possível aprender em outro momento? Talvez sim, pois, como já foi dito, cada pessoa é única e possui potencial para construir e/ou ampliar suas aptidões e virtudes. No entanto, a infância compreende períodos delicados que, se não forem bem acompanhados, podem tornar-se portas de entrada para vícios emocionais e comportamentais, como intolerância, ansiedade, insegurança e apatia — fatores que podem comprometer a continuidade das aprendizagens.

É preciso estarmos atentos para que nós, adultos, não percamos nenhuma fase e nenhum aprendizado essencial ao amadurecimento saudável da criança. Ela nasce com potencial, mas muitas vezes a sociedade o poda, por não ouvi-la, por não observá-la e, principalmente, por não estar com ela em uma presença genuinamente acolhedora e formadora de vínculos.

É necessário, portanto, atenção e ação no tempo certo.

Educar na realidade, na simplicidade e na curiosidade

A verdadeira aprendizagem acontece no mundo real: no brincar livre, no contato com a natureza, nas conversas olho no olho, nas pequenas experiências do dia a dia, no ócio criativo e no despertar da curiosidade. Catherine L’ecuyer, criadora da Teoria da Aprendizagem Educar na Curiosidade, descrita em seu livro publicado em 2015, afirma que a curiosidade é inata nas crianças. Contudo, pode ser sufocada quando lhes oferecemos estímulos que saturam seus sentidos e reduzem sua capacidade de levantar hipóteses, buscar respostas e formular novas perguntas.

Queremos crianças quietas, para quê? Para que sejam obedientes, passivas, sem vontade própria? E, quando chegam à adolescência, desejamos que sejam autônomas, estudiosas e criativas. No entanto, muitas vezes, podamos essas potencialidades justamente na infância — uma fase sensível e fundamental, que serve de base para todas as outras etapas da vida.

É sempre possível retomar o desenvolvimento, mas quanto mais distante a pessoa estiver de sua infância, mais desafiador se torna. Não é impossível, mas será necessário desconstruir crenças arraigadas, abrindo espaço para novos conceitos e vivências que resgatem a curiosidade e o desejo de aprender. Isso ocorre porque a plasticidade cerebral diminui gradualmente com o passar dos anos, até atingir seu ponto máximo de amadurecimento.

L’Ecuyer (2018) também aborda os efeitos dos estímulos artificiais das telas digitais sobre as crianças — tema que será tratado na próxima seção.

A seguir, apresento algumas ações necessárias a serem desenvolvidas com as crianças antes que tenham o primeiro contato com as novas tecnologias, conforme a autora.

"Dissemos anteriormente que a melhor preparação para o uso das NT [novas tecnologias] ocorre no mundo real. Se tivéssemos de resumir em que deve consistir essa preparação, à luz de tudo o que referimos antes, aconselharíamos:

1. Reduzir ao máximo a multitarefa tecnológica, que pode tornar nossos filhos apaixonados pela irrelevância.

2. Reduzir os estímulos externos que exigem continuamente a sua atenção, apagam a sensibilidade e substituem a sua curiosidade natural.

3. Ajudá-los a desenvolver a força de vontade adiando a gratificação.

4. Ajudá-los a ter um locus de controle interno [conhecimento de si para autorregularão].

5. Dar sentido a sua aprendizagem, dando mais importância às motivações transcendentes e internas do que às externas.

6. Dar-lhes oportunidades de relações interpessoais que consolidarão a sua vinculação segura e seu sentido de identidade.

7. Dar-lhes alternativas de beleza para que eventualmente consigam reconhecer o bom e o verdadeiro.

Todas essas atividades implicam que a criança será capaz de pensar por si própria. Sócrates dizia que “uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida. Pensar é uma atividade própria da pessoa humana. Os objetivos da educação consistem em procurar a perfeição de que a nossa natureza é capaz e pensar é parte disso. Talvez devamos ser realistas e começar por aqui: somos humanos. Nem mais – não temos superpoderes nem somos omniscientes – nem menos – não podemos agir como se não o fôssemos. A nossa natureza é humana." (p.207-208)

Assim, quando a criança vive dias repleto de telas, barulhos artificiais e excesso de estímulo, ela perde o interesse pelo mundo ao redor. Entretanto, quando ela vive dias com pausas, natureza, escuta e relações verdadeiras, a curiosidade floresce naturalmente. Isso é vida real!

Um alerta necessário: o perigo das telas

Abro esta seção com uma pergunta: você já leu está reportagem? Os gurus digitais criam os filhos sem telas.

Acompanho o que é exposto sobre a educação dos filhos desses profissionais desde 2011 e, em 2020, assisti ao documentário O dilema das redes. Nele, especialistas e profissionais que atuaram em grandes empresas de tecnologia digital fazem um alerta: as redes sociais podem ter um impacto devastador sobre a democracia e sobre a humanidade em todas as dimensões da vida pessoal e profissional.

Continuei minha pesquisa e cheguei ao livro A Fábrica de Cretinos Digitais: os perigos das telas para nossas crianças, do pesquisador francês Michel Desmurget (2022). Em síntese, ele nos mostra que as telas estão devorando o tempo da infância e que

"os jovens de hoje são a primeira geração da história com um QI mais baixo do que a anterior. E isso está diretamente relacionado ao tempo de exposição dessas crianças às telas: estudos tem mostrado que quando o uso de televisão, [celulares, tablets] e videogame aumenta, o QI e o desenvolvimento cognitivo diminuem." (Orelha do livro)

Esse excerto provoca reflexão e certo desassossego. O pesquisador apresenta dados contundentes, baseados em mais de 1.200 estudos científicos, demonstrando como o uso excessivo de telas na infância afeta o desenvolvimento da linguagem, da atenção e da concentração, além das relações sociais, da empatia, do sono e do comportamento.

Quanto mais tempo diante das telas, pior o desempenho escolar, maior a agressividade, mais dificuldades de linguagem e menor a empatia. Nada disso é exatamente novidade — nós, educadores, presenciamos diariamente esses efeitos em crianças cada vez mais novas.

A exposição dos dados feita por Desmurget (2022) traz, de forma minuciosa, alertas importantes às famílias e às escolas:

  1. As informações disponibilizadas na internet nem sempre são confiáveis;

  2. A recreação oferecida pelas tecnologias digitais não é apenas exagerada e excessiva, mas também sem controle;

  3. A ânsia pelo mundo digital prejudica severamente o desenvolvimento integral das crianças — intelectual, emocional e físico;

  4. O efeito nocivo das telas é tão devastador porque nosso cérebro não está adaptado ao frenesi digital.

O autor também aponta alguns caminhos para reverter o que as pesquisas indicam como uma tragédia anunciada e para adaptar o cérebro ao mundo digital. Sua recomendação é clara: menos telas significam mais vida.

Assim, Desmurget (2022) propõe:

  1. Até os 6 anos de idade, zero telas. A criança aprende com o mundo real, por meio de brincadeiras e interações verdadeiras;

  2. A partir dos 6 anos, no máximo 1 hora por dia, considerando todas as telas;

  3. Quartos livres de telas digitais. Esse espaço deve ser destinado ao descanso e, eventualmente, às brincadeiras e leituras;

  4. Durante o tempo de exposição às telas, os conteúdos devem ser adequados à idade e acompanhados por um adulto;

  5. Mesmo com conteúdo adequado, evitar assistir antes de ir à escola ou após as 18h, pois as telas à noite prejudicam a qualidade do sono, ainda que a criança adormeça durante a exposição;

  6. Quando estiver diante das telas, a criança deve fazer apenas isso — sem brincar, comer, desenhar, estudar ou conversar ao mesmo tempo. O cérebro em desenvolvimento não deve ser submetido a multitarefas, pois isso causa distração e prejudica a aprendizagem e a memória.

A ausência de tecnologias digitais até os 6 anos e o uso gradual a partir dessa idade não causam déficit digital. Pelo contrário, favorecem o desenvolvimento da criatividade, do pensamento crítico e das interações reais — com outras crianças e com adultos que possam mediar o contato com a tecnologia. Assim, as crianças estarão mais preparadas para usar as ferramentas digitais de forma saudável, sem comprometer sua saúde mental nem sua vida social.

Afinal, quem criou a tecnologia digital um dia brincou de verdade, alimentou sua curiosidade e explorou o mundo com imaginação. Sigamos firmes no propósito de auxiliar as crianças a se desenvolverem de forma plena e saudável.

Uma escola, uma casa, uma comunidade

Aqui, na Escola Ateliê Baobá, acreditamos que educar é um ato coletivo, construído por toda a equipe. Protegemos a infância com escolhas intencionais, fundamentadas em:

1. Artes, em todas as etapas, pois potencializam o pensamento crítico e divergente, a criatividade, o prazer pelo conhecimento, a pesquisa, o autoconhecimento e a ampliação da visão de mundo. Assim, as dimensões cognitivas, emocionais, afetivas, sociais e motoras são contempladas no fazer artístico.

2. Brincar livre, por favorecer múltiplas aprendizagens, o desenvolvimento dos sentidos, o movimento corporal, as relações sociais, o exercício da democracia e o ócio criativo. O brincar livre ajuda a evitar a hiperatividade, a tensão, a raiva e o individualismo, além de diminuir o desejo pelas telas digitais.

3. Desemparedar as crianças em nossas ações pedagógicas é um ato de coragem — e, acima de tudo, um ato de amor. Coragem porque o emparedamento dá uma falsa sensação de segurança e controle, mas, na verdade, gera ansiedade, medos, individualismo, dependência das professoras e, muitas vezes, competição.
No quintal, as crianças exercitam sua liberdade, sua criatividade e, assim, vivenciam o pleno desenvolvimento.

4. Alimentação saudável e funcional, que vai além da nutrição do corpo. Ela contribui para o desenvolvimento cognitivo e emocional. Nossa nutricionista elabora cardápios variados, com hortifrútis da estação, proteínas e gorduras boas, garantindo aos bebês e às crianças os nutrientes necessários para um crescimento sadio e equilibrado.

Esses princípios pedagógicos são sustentados por um ritmo desacelerado, contato com a natureza, literatura sensível e relações verdadeiras. A infância precisa de silêncio, tempo livre e mundo real. Ela não precisa de aplicativos — precisa de mãos dadas. A parceria das famílias com a escola fortalece e amplia essa proteção.

Em família, sugerimos que o brincar junto, o silêncio, o contato com a natureza, as histórias e a escuta sensível estejam cada vez mais presentes, pois é a presença, e não a distração, que fará a diferença positiva na vida de nossas crianças.

Nosso compromisso é garantir que cada criança viva uma infância viva, humana e cheia de sentido. O futuro delas não é construído amanhã — ele é fomentado hoje, nas ações dos adultos, que são seu maior exemplo de vida. O brincar entre os pares é essencial para o criançar: o tempo e o espaço de ser criança, que está no cerne da nossa filosofia. Contudo, as crianças expressam o que veem e ouvem dos adultos.

Estejamos atentos — de mãos dadas, com diálogo aberto e coração cheio de amorosidade — em prol de nossas crianças, que nos foram confiadas para serem cuidadas e educadas com respeito e honra.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Tradução Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2014

DESMURGET, Michel. A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. Tradução Mauro Pinheiro. 1. ed. 2. Reimpreção. São Paulo; Vestígio, 2022.

L’ECUYER, Catherine. Educar na curiosidade: como educar num mundo frenético e hiperexigente? Tradução Angela Cristina Costa Neves. São Paulo: Edições Sons Sapientiae, 2015.

_____. Educar na realidade. Tradução Nuno Vinha. 1. Ed. São Paulo: Edições Sons Sapientiae, 2018.

REICHERT, Evânia Astér. Infância idade sagrada: anos sensíveis em que nascem as virtudes e os vícios humanos. 3. ed. revisada e ampliada. Porto Alegre: E. A. Reichert, 2011.

UNICEF. Desenvolvimento infantil Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/desenvolvimento-infantil#:~:text=A%20primeira%20inf%C3%A2ncia%2C%20per%C3%ADodo%20que,social%20e%20emocional%20das%20crian%C3%A7as Acesso em: 01 out. 2025.


[1]Utilizo nome e sobrenome do/a autor/a ao/à ser referenciado/a pela primeira vez para dar visibilidade aos homens e às mulheres com quem dialogo.

[2]A primeira infância, período que vai da concepção até os 6 anos [11 meses e 29 dias] de idade, é considerada uma janela de oportunidades crucial para a saúde, o aprendizado, o desenvolvimento e o bem-estar social e emocional das crianças. Estudos científicos têm demonstrado que as primeiras experiências vividas na infância, bem como intervenções e serviços de qualidade ofertados nesse período, estabelecem a base do desenvolvimento. Ou seja, o que acontece nos primeiros anos de vida é fundamental para o desenvolvimento integral de meninas e meninos, de modo que é preciso que haja investimentos nessa fase para que esses impactos sejam positivos para toda a sociedade. (Unicef, Grifos da autora)

Alessandra Pereira Pedroso. Diretora e Pedagoga da Escola Ateliê Baobá, Mestra em Educação: Formação de Professores, Currículo e Práticas Pedagógicas – Unisinos (2022); Articuladora da Base Nacional Comum no Rio Grande do Sul – BNCC/2017 (2018-2024), Especialista em Educação Socioambiental – Feevale (2009) e é graduada em Pedagogia – Unisinos (2006). Contato: pedroso.alessandra2012@gmail.com.